Guimarães
por Licínia Quitério
Quando há poucos anos estive mais uma vez em Guimarães, veio-me à lembrança a visita que ali fiz com os meus pais, no tempo em que eu era uma jovem rapariga com a curiosidade pelo mundo a crescer dentro de mim. À vista de novas terras, os meus olhos arregalavam-se e os ouvidos ficavam alerta para outros falares.
Ali ia eu de novo, muitos anos volvidos, no comboio que me levava pelo vale do Ave, lindíssimo de verdes e de águas e de sombras, manchado de esqueletos de fábricas, muitas fábricas abandonadas, desfazendo-se em estilhaços de vidro, em chapas de metal ferrugentas, janelas rasgadas num riso monstruoso. Pelo meio dos vinhedos, as velhas casas de granito por lá estão, com ou sem gente, com longas histórias para contar. Foi no balanço ritmado desse comboio que me revi no outro tempo junto de casas como aquelas.
Amigos de meus Pais levaram-nos a visitar uma fábrica de cutelaria que funcionava num recanto de paraíso, perdido no verde vinha e no luzir das micas. Era a hora do almoço do pessoal, quase só mulheres que, sentadas no chão à sombra das parreiras, sorviam o caldo em malgas, que seguravam com ambas as mãos. Foi aí que senti os olhares das mulheres acocoradas a espiarem-me por detrás das malgas. Recordo o meu vestido em trapézio, o meu cabelo tufado, os meus sapatos de salto e as minhas mãos muito brancas que me deram de repente uma imensa vergonha ao notar as mãos da cor do granito das mulheres na hora do caldo.
Hoje, as minhas mãos ainda brancas têm rugas e veias azuladas como as paredes das fábricas mortas, no vale do Ave, muitos anos depois de eu ter aprendido como eram os olhos das mulheres suspensos do trapézio do meu vestido.
Os comboios, as casas, recordações que ficam da viagem que vai longa.
Licínia Quitério
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